Este blog, criado em janeiro de 2007, é dedicado à minha filha Flavia e sua luta pela vida. Flavia vive em coma vigil desde que, em 06 de janeiro de 1998, aos 10 anos de idade, teve seus cabelos sugados pelo sistema de sucção da piscina do prédio onde morávamos em Moema - São Paulo. O objetivo deste blog é alertar para o perigo existente nos ralos de piscinas e ser um meio de luta constante e incansável por uma Lei Federal a fim de tornar mais seguras as piscinas do Brasil.

A CRENÇA DE CADA UM.

- 30 de março de 2007
Pessoas de diferentes religiões, me acenavam, imaginem, com possibilidades de cura para Flavia. Alguns, praticantes mais fervorosos, chegavam a garantir que apesar das seqüelas diagnosticadas pelos médicos como irreversíveis, Flavia se recuperaria por completo para depois dar testemunho do poder da fé, do poder de Deus.

As pessoas ao nos fazerem tais afirmações, têm a melhor das intenções, mas é muito complicado lidar com a expectativa de que esta ou aquela religião possa trazer a solução para problemas de saúde tão graves. Um dos médicos de Flavia, ao presenciar uma dessas manifestações de fé no quarto dela, disse que este tipo de atitude deveria ser severamente repreendido e mesmo repudiado. Primeiro porque uma pessoa não pode afirmar que outra vai se curar baseada apenas em sua crença religiosa, e depois porque não se deveria usar a fragilidade de quem está sob o efeito da dor para fazer pregações religiosas, ou arrebanhar quem está sofrendo para esta ou aquela religião.

Uma ex colega de trabalho – evangélica - repetia incessantemente que Flavia se recuperaria em breve para Gloria do Senhor. Essa moça falava isso com tanta convicção que me deixava impressionada. E confusa. E a confusão se instalou principalmente quando depois de muito tempo – anos – nenhuma melhora ocorreu no quadro neurológico de Flavia, e essas mesmas pessoas me diziam que se melhora não houve é porque não tive fé. Passei então a me sentir culpada por não ter essa fé necessária à recuperação de minha filha, e depois de ter perambulado por várias religiões, desisti de encontrar aquela que me trouxesse respostas, pois entendi que respostas não há. E assim, confusa e inconformada me recolhi a mim mesma.

MAGIA E MEDO.

- 26 de março de 2007
Enquanto isso no Hospital eu continuava a ser assediada por várias religiões. Uma pessoa conhecida me falou de uma sensitiva “sensacional”. Disse que essa sensitiva faria um “trabalho” em Flavia que certamente a faria recobrar a consciência. Impôs, porém uma condição para enviar a mulher ao hospital: Que após a recuperação de Flavia pelos poderes da para-normal eu me comprometesse a juntamente com Flavia, prestar pelo resto de nossas vidas, serviços relevantes ao centro espírita freqüentado por elas. Concordei no ato.

No dia combinado a sensitiva apareceu no hospital. Era uma mulher estranha. Não me olhava diretamente, falava sussurrando e andava curvada como se fosse corcunda. Quando a vi quase me arrependi de haver concordado com a visita, mas para não ser indelicada com a pessoa que a enviou, num esforço, a recebi cordialmente. Sem fazer perguntas sobre o que acontecera com Flavia ou demonstrar qualquer interesse por seu quadro clínico, a sensitiva foi se aproximando de sua cama. Sem tirar os olhos da mulher eu me sentia angustiada e me perguntava por que concordara com aquilo. Quem seria exatamente aquela mulher? Que conhecimentos ela possuía? Seria verdade o que eu ouvira sobre seus poderes? E seriam esses poderes fortes o suficiente para tirar Flavia do coma como ela queria me fazer acreditar? Reconheci que era tarde demais para retroceder e fiquei observando a sensitiva trabalhar.

A mulher segurou as mãos de Flavia e começou a conversar com ela, mas as palavras lhe saiam emboladas e não me era possível entender exatamente o que ela dizia. À medida que falava a mulher aproximava o rosto dela do de Flavia, até quase tocá-la. Aquilo me incomodava. E se Flavia, apesar de aparentemente ausente, estivesse também se sentindo incomodada por aquela presença estranha? Fui ficando cada vez mais agoniada. Num dado momento, a sensitiva botou no rosto uma expressão que me causou medo. Eu estava ao lado da cama de Flavia, olhando fixamente para a mulher mas ela parecia não me ver, demonstrando estar em transe. Então, num gesto inesperado e rápido a criatura segurou Flavia pela cabeça sacudindo-a várias vezes. Assustada pensei: - Meu Deus, o que essa mulher vai fazer com minha filha?! E sem lhe dar mais tempo, segurei-a pelo braço e a empurrei quarto afora. A conhecida que a enviou ficou zangada comigo e a partir daí nunca mais me procurou.

O RALO SUGOU OS CABELOS. POR QUE?!

- 24 de março de 2007
A forma desrespeitosa como fui tratada pelo síndico do prédio, pelo advogado do condomínio e pelo representante da seguradora, me fez refletir e decidi que não continuaria na constrangedora situação de fazer bingos e rifas, quando havia um seguro que por direito já deveria ter sido pago. Além disso, comecei a me questionar do porquê de Flavia ter ficado com os cabelos presos ao ralo da piscina. Alguma coisa deveria estar errada com o sistema de sucção. Era preciso investigar.

Comecei então, por conta própria, uma obstinada investigação junto ao ralo da piscina. Ao chegar do trabalho, todos os dias, mesmo com a noite já começando a chegar, eu vestia uma roupa de banho pegava uma boneca de Flavia e mergulhava na piscina, aproximando o cabelo da boneca o mais próximo possível do ralo, para ver se sugava. Moacir, o zelador me observava e dizia coma ar de deboche:

- A senhora é mesmo teimosa dona Odele, eu já lhe disse que o ralo da piscina não suga cabelo de ninguém.

Eu, com ímpetos de lhe pular no pescoço respondia:

- Pois sugou o cabelo de Flavia senhor Moacir, e pode acreditar, isto ainda será provado!!

Cada vez mais convencida de que o sistema de sucção daquela piscina foi quem causou o acidente que interrompeu a infância saudável de minha filha, e sem ainda ter conseguido receber o seguro do condomínio, saí em busca de um advogado que aceitasse provar que Flavia teve sim, os cabelos sugados pelo ralo da piscina.

E aí começaria uma dura batalha: Encontrar um advogado que aceitasse a causa, e mais, que aceitasse receber seus honorários ao final de tudo. Um amigo da HP me indicou um conhecido dele, pessoa importante, excelente profissional me dizia ele. Nunca consegui falar pessoalmente com esse advogado, nem jamais lhe vi o rosto. De todas as vezes que eu telefonava, ele me dizia que por estar muito ocupado não poderia me receber, mas que eu mandasse então toda a papelada que eu tivesse sobre o acidente que ele analisaria. Fiz isso e fiquei aguardando, telefonando semanalmente para o homem para saber se ele já tinha uma posição. A espera me deixava ansiosa e agoniada.

TRÊS CONTRA UMA.

- 21 de março de 2007
As despesas com o tratamento de Flavia se avolumavam. Os bingos, rifas e doações ajudavam é verdade, mas era uma forma de obter dinheiro que me colocava em situação constrangedora. As tentativas que eu fizera até então de receber o seguro existente no prédio tinham sido inglórias. O síndico do prédio se recusava a me liberar do pagamento do condomínio mensal, pois segundo ele estaria “abrindo um precedente”. Pedi então que ele me ajudasse a receber o seguro que me era devido mas, só depois de muita insistência consegui que fosse marcada uma reunião na administradora do condomínio, com a participação de seu diretor e advogado do condomínio, um representante da seguradora, o síndico e eu.

No dia e horário marcados para a reunião, mesmo eu tendo chegado com uma antecedência de 15 minutos, o síndico mais o representante da seguradora já estavam reunidos com o advogado do condomínio. Até que me chamassem, amarguei uma longa espera. Assim que entrei na sala de reunião, o advogado do condomínio reparou que minha bolsa estava aberta e perguntou com voz ríspida se eu carregava ali um gravador. No transcorrer da reunião entendi o porquê da pergunta do homem, quando nenhum dos três se dispunha a me facilitar as coisas e por todos os meios tentavam me convencer de que não seria possível eu receber o seguro, já que a seguradora só o pagaria mediante a comprovação de culpa do condomínio no acidente que deixou Flavia em coma. O síndico por sua vez dizia que não se responsabilizaria por nada e assim saí da reunião sem qualquer solução ou ajuda para o recebimento do seguro, que embora não fosse um valor adequado à gravidade do acidente, certamente seria de muita utilidade para eu pagar as despesas dele decorrentes, principalmente aquelas referente à complementação do Plano de Saúde.

Saí da reunião perplexa com a postura dos três homens. Deixaram claro que não pretendiam colaborar. Ficou evidente que todos queriam se eximir de suas responsabilidades, e pelos olhares que trocaram entre si pude perceber que eles se sentiram aliviados com o fim da reunião, mesmo não tendo conseguido que eu concordasse com suas colocações. Percebi que eu teria que lutar para fazer valer os direitos de Flavia. E eu lutaria.

BINGOS.

- 18 de março de 2007
Durante o ano de 1998, foram feitos três bingos e várias rifas. Amigos e conhecidos ajudavam no que podiam. Doavam prendas, vendiam cartelas e trabalhavam nos bingos que eram realizados no Salão Paroquial da Igreja de Moema, cedido pelo Padre Olivo Binoto.

O salão era bastante amplo. As mesas, eram redondas e brancas mas estavam precisando de pintura. Isto porém não foi problema. Por iniciativa própria, Jandira França, amiga de minha amiga Sylvia Putz, costurou toalhas de tecido bem leve, adquirido por ela na Rua 25 de Março. As toalhas foram confeccionadas com elástico em volta, o que as deixou bem presas às mesas, causando um bonito efeito. Eram todas azuis. No centro de cada mesa Jandira colocou uma embalagem também azul, contendo duas canetas para as pessoas marcarem as cartelas dos bingos. As embalagens das canetas combinavam com as toalhas e tinha em cada uma escrito um versículo bíblico. Até hoje, enquanto escrevo este texto, me emociono ao lembrar de tamanha delicadeza de Jandira.

Ao final, as toalhas foram retiradas e guardadas para serem reutilizadas caso fosse necessário. Foi necessário. No segundo e terceiro bingo, as mesmas toalhas confeccionadas por Jandira guardadas e ainda em bom estado, foram reutilizadas, tendo agora como enfeites de mesa três graciosas chorrincas, que são mini ikebanas, confeccionadas por minha amiga Maria José Recchi.

Meu amigo Ulisses Spagiari, ajudado por nosso também colega de trabalho Jorge Popac eram os de mestres de cerimônia. Sidnei Gen, outro colega de trabalho cantava os números do bingo, professoras do colégio Nossa Senhora Aparecida e alguns conhecidos do bairro cuidavam de toda a logística e ao final do evento, em poucos minutos o salão estava tão limpo com mesas e cadeiras empilhadas e guardadas que nem se diria que ali estiveram reunidas tantas pessoas.

Esses bingos não teriam sido necessários, se a seguradora do condomínio tivesse, como era sua obrigação, pago na época devida, o valor do seguro – 100 mil reais. Esse valor só foi pago pela AGF dois anos após o acidente e mediante uma árdua batalha judicial. O dia em que nossos direitos forem respeitados sem que precisemos recorrer à nossa lenta justiça, muito sofrimento poderá ser evitado.

RECEBENDO MAIS AJUDA.

- 13 de março de 2007
A situação em que pessoas voluntárias ficavam à noite no hospital com Flavia, durou dois meses. Na verdade, existia em mim a esperança de que a qualquer momento a situação pudesse se reverter, ou seja, Flavia pudesse melhorar e tudo se tornaria mais simples de administrar. Mas não, Flavia não tinha perspectiva de alta e tive que pensar em contratar também uma acompanhante para a noite, pois seguir com aquele esquema de cada dia uma pessoa diferente ficar à noite com ela seria inviável, além do que as pessoas iriam claro, se cansar. Aí, mais uma enorme demonstração de solidariedade: As pessoas que vinham passar a noite no hospital com Flavia, lideradas por minha amiga Arlete Fontana, passaram a fazer depósitos mensais numa conta bancária aberta em nome de Flavia, especialmente para ajudar no pagamento das despesas não cobertas por meu plano de saúde. Assim, pude pagar uma acompanhante para a noite.

A situação financeira foi se complicando. Meu plano de saúde precisava ser complementado em porcentagem que variava até 30%. Essa porcentagem quando se refere a uma consulta médica não é tão significativa em nosso orçamento, mas quando se trata de diárias de UTIs e internação hospitalar prolongada, fica difícil. Além da complementação do plano de saúde havia aqueles gastos que não eram mesmo cobertos pelo plano, como por exemplo órteses e fraldas. A Seguradora do condomínio, a AGF, continuava a se recusar a me pagar o seguro existente no prédio contra acidentes pessoais, enquanto não fosse comprovada a culpabilidade do condomínio no acidente. Dessa forma, aceitando sugestões de amigos, começamos a organizar bingos e rifas para a arrecadação de fundos que me ajudassem a arcar com essas despesas.

Mais uma vez ficou claro para mim que a solidariedade é uma benção. No sofrimento, a solidariedade não elimina a dor, mas certamente a torna mais suportável. Embora com o passar do tempo muitas das pessoas que me ajudaram nos primeiros anos após o acidente tenham se afastado, eu me lembro de cada uma delas sempre com muito carinho. Elas foram fundamentais, me deram carinho, me apoiaram e por isso essas pessoas se tornaram para mim, inesquecíveis.

ACREDITANDO EM TUDO.

- 2 de março de 2007
Quando alguém passa por uma situação difícil ou de dor extrema, é comum as pessoas se aproximarem de nós, com a intenção de nos dar conforto espiritual. O complicado é que como as religiões são tantas, muitas também são as mensagens que recebemos, num momento em que dificilmente temos discernimento para saber em que direção seguir.

Pessoas de diferentes religiões me falavam com muita convicção sobre suas crenças e com a melhor das intenções eu sei, tentavam me passar esperança, dizendo que bastaria eu ter fé que Flavia certamente logo estaria recuperada. Bastaria eu ter fé? Simples assim? Mas como mandar embora a dor e o medo para dar lugar à fé? E o que é exatamente a fé, um dom, um sentimento, um privilégio? Por não ter a resposta, rezei para os santos, tantos... Freqüentei várias religiões ao mesmo tempo, e acabei ficando mais confusa e perdida.

Admiro as pessoas que têm fé cega, não questionam, acreditam e pronto. Eu já sou mais racional. Preciso de respostas que na maioria das vezes não tenho e por conta disso sinto indignação, principalmente quando algo de terrível acontece com uma criança. Fundamental no entanto é cuidar para que a indignação não nos torne pessoas amargas e hostis. É preciso sorrir, ser gentil com as pessoas. Acredito que dessa forma a vida fica mais leve. E nós também.
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